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domingo, 23 de outubro de 2011

História inédita de 500 anos

'Davi', de Michelangelo - Reuters
Reuters
'Davi', de Michelangelo
 

Lançado há quase cinco séculos, 'Vidas dos Artistas' e 'Vida de Michelangelo', seu desdobramento, saem finalmente no Brasil, em comemoração ao quinto centenário do nascimento do pioneiro Giorgia Vasari

22 de outubro de 2011 | 3h 07
 
O Estado de S.Paulo
ANTONIO GONÇALVES FILHO
 
Giorgio Vasari (1511- 1574) nasceu há 500 anos e o mundo continua celebrando sua contribuição não só como arquiteto e pintor, mas como crítico e primeiro biógrafo dos grandes gênios do Renascimento italiano. Simultaneamente, estão sendo lançados o essencial Vidas dos Artistas - inédito no Brasil, apesar de ter sua primeira edição (pelo editor ducal Lorenzo Torrentino) datada de 1550 - e Vida de Michelangelo, que traz a biografia do maior artista do período extraída da segunda edição, de 1568, a chamada "giuntina", revista do primeiro livro, acrescida de um prefácio, uma introdução e comentários do professor e ex-curador do Masp, Luiz Marques (leia entrevista na página ao lado). Para concluir o ciclo de homenagens, a Biblioteca Nacional inaugurou ontem a exposição (leia abaixo) Giorgio Vasari e a Invenção do Artista Moderno, que traz, entre objetos e peças artísticas, um exemplar da primeira edição de Vidas dos Mais Excelentes Arquitetos, Pintores e Escultores, título original de Vidas dos Artistas.
Mesmo quem não leu os livros, mas já visitou Florença, conhece Vasari. Ele é o autor da longa passagem - hoje chamada Corridor Vasari - que liga o Uffizi ao Palazzo Pitti, sobre o Rio Arno. Pintor maneirista, são dele também as pinturas das paredes e do teto da Sala di Cosimo no Palazzo Vecchio. Além dessas obras, foi o responsável pela renovação das mais visitadas igrejas medievais na parte antiga da cidade, Santa Maria Novella e Santa Croce. Considerado o primeiro historiador de arte italiano, Vasari foi amigo de vários dos artistas retratados em seu livro - especialmente de Michelangelo - e protegido da poderosa família Medici (a obra, aliás, é dedicada ao grão-duque Cosimo 1.º de Medici). Demonstrar sua amizade pelo autor da Pietà era, como diz o professor Luiz Marques em sua entrevista, "um ponto de honra para Vasari, sobretudo após 1553, quando Ascanio Condivi publicou uma biografia alternativa de Michelangelo".
Vasari, que não tinha o pudor da autocitação, era rico e cortesão, servindo sem contestar ao poder da família Medici, ao contrário do insolente Michelangelo, que não temia nem mesmo os papas, colocando mais genitálias na Capela Sistina do que suportavam os olhos de seus contemporâneos - nem tanto os de Sisto 6.º e Júlio 2.º, que, segundo comentários, tinham a mesma inclinação sexual do artista. Essa sua independência em relação à corte é mesmo, segundo Marques, o leitmotiv da biografia que escreveu do artista, "quase um contramodelo ideal de si próprio". Vasari, por certo, teve mais sucesso como arquiteto e biógrafo do que na pintura. Embora demonstrasse controle técnico como artesão e fosse bom crítico, capaz de reconhecer a genialidade de seus contemporâneos e predizer o futuro de alguns deles, como o de Michelangelo, não passou à história como um artista de sua estatura. Vasari, contudo, insistia em se autodefinir como pintor (e bem pago pela corte), não historiador.
Na última função, Vasari destacou o papel dos artistas florentinos, privilegiados na edição de Vidas dos Artistas. Talvez por culpa ou necessidade de reavaliar seu julgamento, a segunda edição do livro foi ampliada para abrigar artistas de outras regiões da Itália (Veneza, por exemplo) não favorecidos na publicação original, como Ticiano. Vasari aproveitou e inseriu nela a autobiografia, sem medo de ser chamado de cabotino. De qualquer modo, a arte de Veneza foi sumariamente ignorada na edição de 1550 - esta que agora é lançada e começa com uma descrição enciclopédia do que é a arquitetura, a escultura e a pintura, atribuindo ao flamengo Jan van Eyck (c. 1385-1441) a invenção da pintura a óleo.
Sua história começa com Cimabue (1240-1300), o que não é pouco. É uma biografia brevíssima, repleta de superlativos e erros de cronologia. Vasari diz, por exemplo, que ele morreu em 1300 e foi enterrado na Basílica de Santa Maria del Fiore, em Florença, quando, em 1302, Cimabue ainda estava vivo e morando em Pisa, aos 62 anos. Último seguidor da tradição bizantina e descobridor de Giotto, Cimabue é avaliado por Vasari como um artista no qual já se percebe, apesar disso, "o traçado moderno". Nisso todos estão de acordo. Já quando se trata de sua incoerência cronológica, historiadores dos séculos seguintes não lhe deram trégua. Ele, de fato, sacrificava fatos e datas, segundo o professor Marques, "à causa de uma maior eloquência da cena histórica". Isso quando escreve sobre séculos anteriores ao 15, o que é bastante compreensível, pois é esse o período que Vasari considera fundamental para a história da arte - assim chamado de Renascimento porque, para o historiador, a Idade Média foi a decadência, após o esplendor da Antiguidade.
Cimabue e Giotto eram o maternal, o jardim da infância que levaria os pintores à Alta Renascença. Vasari diz que Giotto tirou a pintura do "mau caminho" numa época "grosseira e inapta". Destaca ainda sua origem humilde na zona rural de Florença para atribuir à Providência seu talento de pintor e condenar os séculos anteriores pela barbárie pagã. A submissão fiel de Giotto à natureza seria o marco zero de uma arte que atingiria a perfeição com a "filosofia moral" e a "expressão poética" de Michelangelo, segundo o historiador. Como em quase todas as biografias, o anedótico ganha peso. Ele conta, por exemplo, que o pintor, ao ser procurado por um enviado do papa, tomou uma folha de papel e desenhou nela um círculo vermelho como prova de sua habilidade, para desapontamento do pobre homem, que se sentiu logrado. O episódio é tão obscuro quanto o afresco do Palagio di Parte Guelfa, em Florença, que Vasari garante ter existido, o que não tira o sabor dessa obra biográfica de referência, cheia de boas histórias e que exigiu dele pelo menos dez anos de dedicação.
Pena que Vasari não tenha conhecido Leonardo da Vinci, morto em 1519, quando o historiador tinha apenas 8 anos. Isso não impede que conte boas histórias a seu respeito, como a sobrenatural força de sua mão direita (capaz de entortar uma ferradura), embora confunda o pai do artista, Piero, com seu tio. Como cronista da época, fala também da "grande animosidade" existente entre Da Vinci e Michelangelo, mencionando que o primeiro, ao saber que seu rival fora convocado pelo papa para fazer a fachada da igreja de San Lorenzo, saiu da cúria pontifícia e foi para a França, onde era amigo do rei.
Vasari não toma Leonardo como referência de conduta moral, como o faz com Fra Angelico. Chama a atenção para suas extravagâncias de bruxo - ele tinha um lagarto ao qual agregou asas, como um pequeno dragão - e experiências alquímicas, dando a entender que, como artista, trabalhou o espaço pictórico de maneira científica, pouco ortodoxa, sem consonância com a doutrina da Igreja, a ponto de concluir sua biografia mencionando a confissão de Da Vinci, em contrição, no ato da morte. Já o florentino Fra Angelico é definido como um "santo" que se esquivou de todas as atividades do mundo "e viveu com pureza". Para o historiador, só um homem assim, sem "apetites indecorosos", poderia executar obras eclesiásticas, não um "infame" como Andrea del Castagno, que ganha, além desse adjetivo, outros piores. O artista seria "invejoso" e "vingativo", além de ter "língua ferina" e ser o assassino de Domenico Veneziano, seu mestre, que lhe ensinou a técnica da pintura a óleo.
O embate natureza versus criação artística perpassa o livro todo com as biografias dos artistas e está presente, de modo particular, na de Rafael de Urbino. Se todos os artistas do passado, para Vasari, haviam nascido com certa dose de "loucura" e "selvageria", Rafael seria o antípoda, nele resplandescendo as "virtudes da alma", a "graça", a "beleza" e os "bons costumes" - bem, nem tanto, pois tais adjetivos, escolhidos à revelia (Vasari tinha 9 anos quando Rafael morreu), não levam em conta o próprio epílogo da vida do pintor, que Michelangelo odiava a ponto de atribuir a ele intrigas palacianas para o derrubar. Vasari conta - sem citar o nome de Margherita Luti - que Rafael "desenfreou-se mais que de hábito" numa noite de loucuras com a filha do padeiro, voltando para casa com febre altíssima. Morreu depois de uma sangria feita pelos médicos, que o deixou ainda mais fraco. Antes, "confessou-se em contrição". Todos fazem o mesmo nas biografias de Vasari.
Por vezes, o historiador esbarra no melodramático, como ao falar do pintor florentino Paolo Uccello, "que viveu tão pobre como famoso", pintando para frades com menos dinheiro ainda. Vasari cita os afrescos feitos para San Miniato in Monte, fora dos muros de Florença, por volta de 1440. O abade dava-lhe muito queijo para comer e, enjoado, Uccello fugia dos frades na rua como o diabo da cruz, tudo para não ter de concluir o trabalho. Vasari, que morreu rico, acusa os artistas de negligência, pedindo às futuras gerações que guardem um pouco "para a velhice e a doença", a fim de não serem "afetados pela necessidade" como Botticelli. Visionário na arte, capaz de exercitar um protoexpressionismo intuído por Vasari, Botticelli teria sido um equivocado "defensor da seita" do frade Savonarola. Abandonando a pintura, envelheceu, foi esquecido e morreu na miséria.
Vasari, na conclusão de seu livro, admite ter buscado amparo - e não pouco - nos escritos de Domenico Ghirlandaio e Rafael, ambos retratados em Vidas dos Artistas. Pode ser que os relatos desses pintores sobre a história de seu tempo hoje pareçam insuficientes para explicar um período tão complexo como o Renascimento artístico italiano, mas a ausência do livro do historiador seria ainda mais trágica por privar os leitores de um testemunho que tenta unir num único sistema personalidades as mais conflitantes. Pode ser esquemático, mas é essencial.

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