DE 6 de agosto a 17 de setembro
Encontros de eixos resultam em estrelas feitas de linhas retas que cintilam sobre rios voadores. Situadas em planos que miram o transcendente, suas aparições dependem da sobreposição de traços com inclinações distintas. Rios caudalosos surgem antes. Descem de uma ponta à outra da superfície durante rituais e embates com a força da gravidade. Quando deixam de ser quedas d’água para recuperarem o horizonte, irradiam luminosidade das profundezas de oceanos e encontram céus feitos de gestos simples, acolhedores de sonho, poesia, utopia e linguagem. Esses mesmos rios de vapor d’água, atravessados por linhas paralelas, dão formas a pontes suspensas cuja extensão conecta realidades infinitesimais com fractais expansivos que relembram a potência da unidade na diversidade. Ligeiramente distintos uns dos outros, cada risco sustenta existências alheias sobre águas atmosféricas desprovidas de margens. Turbulência e fluidez retomam a ideia de Isidore Ducasse, para quem a poesia não é outra coisa senão um rio majestoso e fértil. Nesse quadro, resta imaginar o maravilhamento do poeta caso tivesse tido contato com essas entidades que transportam água invisível cortando céus de cidades que ateiam fogo em si mesmas. No silêncio meditativo do ateliê de Sandra Cinto reside um fragmento da contraparte de tal sociedade autodestrutiva. Enquanto gera rios voadores sobre telas, elabora sua reverência à circulação livre da atmosfera que deixa a Amazônia em direção ao Centro-sul do território sul-americano.
Não é de hoje, inclusive, que firmamentos e corpos d’água traçados pela artista revelam seu fascínio pela persistência da natureza em manter a vida pulsante, indistintamente. Daí empregar o plural na sentença que intitula a exposição e revigora o espírito resiliente face à condição incendiária de sua segunda parte, já que noites de esperança dependem da repetição de gestos libertadores. Em sua prática, esse estado consiste em transmutar ações banais cotidianas e perceber o brilho de corpos celestes como a potência atômica de vagalumes que dançam na aurora. Na contracorrente da devastação dominante, suas travessias, mergulhos, sobrevoos e enraizamentos se entrelaçam em um corpo de obras com o qual a artista revela a engenhosidade do cosmos, em profundezas alcançadas apenas pela integração da mente com o espírito. O convite a compartilhar noites de esperança ocorre com as oscilações da matéria, a única maneira para mergulhar nas imperturbáveis profundezas oceânicas e alçar voos em céus acolhedores de rios filhos da Floresta Amazônica. Utópica e espiritual, Noites de Esperança na Cidade Maçarico reduz a diferença substancial de arquipélagos, constelações e pequenos pontos que manifestam a conjunção de indivíduos com a natureza.
Foi Paulo Freire quem listou enunciados que traduzem o verbo esperançar, entre os quais, “juntar-se com outros para fazer de outro modo” é elementar na montagem. De fato, os envelopes sobre a mesa destinada a receber uma pessoa por vez e solicitar que o espaço dos sonhos seja narrado ao eu estrangeiro ou a pessoas distantes equivale a alcançar o “inédito viável” de Freire. O que adiciona, às noites, metáforas do estado de vigília de pessoas buscadoras de horizontes possíveis para futuros vividos coletivamente. Para tanto, a caixa acolhedora de cartas acumulará rascunhos, listagens, desejos e outras escritas com destinatários convidados a compartilhar sonhos capazes de criar e construir mundos.
"Construir", para o professor, também é sinônimo de esperançar. Por alterar a ordem das coisas, acolher ideias e desdobrar possibilidades, o verbo requer compasso para o alinhamento com a matéria imprevisível. Em 2006, esperançar e construir aparecem como substantivos na obra da artista, sendo Construção a cobertura do espaço arquitetônico com estruturas estelares que vibram em diferentes intensidades e Noites de Esperança,a sobreposição de planos que celebram a vida inscrita no passado e projetada para o futuro. No segundo semestre de 2022, em meio à devastação severa do país, é preciso ter em mente quanto esperançar é verbo que exige cultivo. É preciso reativar a memória corporal de quando o dia virou noite, com plumas de fuligem trazidas por rios voadores da região amazônica em chamas. É preciso construir futuros como sinônimo do verbo esperançar, reinstaurar o estado de luto vivido por negligências voluntárias e despertar a urgência por revoluções da consciência. É preciso, igualmente, manifestar revoltas contra a fome opressora engendrada pelo poder que transforma bens naturais em commodities, o mesmo que naturaliza a violência e o ódio. Diante disso tudo, Cidade Maçarico é, também, memória de infância. É a luz destrutiva que ilumina a vila de mesmo nome onde a artista viveu até a primeira juventude. São os dias em que o pai vivia longe de sua condição humana. Assujeitado à outra dimensão construtiva, ele foi um dos que “amou daquela vez como se fosse máquina”. Distante da dimensão esperançosa que o verbo construir encontrou no pensamento freireano, a Construção, na Vila Maçarico, recebeu o significado dos versos que Chico Buarque escreveu em 1971. Por isso as memórias de infância da artista associam as descidas ao litoral com imagens de dias felizes, ocasião em que seu pai respirava e observava os filhos aprenderem a nadar. Enquanto isso, na Vila Maçarico, as notícias climáticas repetiam — ainda repetem — a veiculação do Jornal do Brasil de 4 de dezembro de 1968: “Temperatura sufocante. O ar está irrespirável.”
Foi a artista Ana Tavares quem identificou, no começo da década de 1990, em céus redentores realizados pela então aluna, a chama de luz da refinaria que dá à localidade o nome Vila Maçarico. Situada no centro de uma pequena composição com a qual a jovem artista construía a leitura de mundos opostos, as chamas aludem à condição abrasiva e violenta da pólis. Ou, ainda, da pessoa cidadã, politikoi, responsável por seu alastramento ou extinção. Conforme ocorre com o direito à liberdade de expressão — eliminado em contextos nos quais a vida coletiva e diversa é objeto de opressão e extermínio —, o direito à cidade, relembra Henri Lefebvre em seu livro homônimo, consiste em elaborar uma utopia experimental que interroga, na prática, os ritmos da vida cotidiana e suas prescrições favoráveis à felicidade. Algo contrário a esse princípio corrompe o direito à pólis e descredita, portanto, o indivíduo a exercer atividades públicas. Com isso, Noites de Esperança na Cidade Maçarico destina-se a fazer voar e transitar por endereços variados a construção de um espaço de encontros para que pessoas, conjuntamente, revisem a cidade e iniciem algumas práticas capazes de introjetar felicidade em territórios e campos dizimados. Ao compor musicalidades feitas de sonhos que se entrelaçam, a artista preserva movimentos em sua prática quixotesca que compreendem o verbo esperançar como fundamento de generosidade, maneira encontrada de “fazer de outro modo” dentro da arte.
Inclusive, no momento em que desfaz escalas, amontoa passado e futuro em áreas oceânicas modeladas por ventos intransponíveis — em favor de processos que imploram pela cicatrização de centros urbanos feridos por maçaricos que destilam ódio e discriminação —, suas Noites de Esperança acomodam corpos em camas individuais. Estando em suspensão, fará bem que se lembrem ou entrem em contato com as palavras de Arundhati Roy, especialmente o breve trecho que escreveu a uma amiga demonstrando outros mundos possíveis, qualificados pela potência do sonho que Sandra Cinto porta e distribui por meio de linhas, pontos, rios, envelopes e cartas:
O único sonho que vale a pena ter é sonhar que você viverá
enquanto estiver vivo e morrerá apenas quando estiver morto.
Amar. Ser amado. Sem nunca
esquecer sua própria insignificância.
Nunca se acostumar à violência indescritível e
à desigualdade vulgar ao seu redor (...).
O trecho da pequena lista de sonhos da escritora indiana encontra nas obras da artista outras intuições sagradas, como as esferas reluzentes que evocam ciclos de vida de existências anônimas, feito aquela do trabalhador que “morreu na contramão atrapalhando o público.” Por isso suas noites, traços e pontos sobre rios voadores são lembranças que acalentam e abraçam. São, ao mesmo tempo, metáfora de chuvas geradas por raízes na Amazônia, fusão nuclear que evapora mares e banha florestas, assim como a necessidade de fazer girar o ciclo de germinação de sementes para perdurar a vaporização de mares e manter o direito à vida.
Josué Matto
Casa Triângulo
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